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Dr. Guilherme Rapozeiro França

Dr. Guilherme Rapozeiro França

Professor Adjunto Departamento de Ciências Fisiológicas - Farmacologia Instituto Biomédico - UNIRIO

Hiperalgesia induzida por opioides: um paradoxo estabelecido entre os diversos tipos celulares que compõem o sistema nervoso central

Dr. Guilherme Rapozeiro França - 
Professor Adjunto - Instituto Biomédico - UNIRIO -

(18/04/2017) - Sintoma comum em inúmeras doenças, a dor é um dos principais motivos que leva o paciente a procurar atendimento médico (Gatchel et al, 2007). Segundo a International Association for the Study of Pain (IASP) “a dor é uma experiência sensitiva e emocional desagradável, associada ou relacionada a uma lesão real ou potencial dos tecidos, sendo que cada indivíduo aprende a utilizar esse termo através de suas experiências anteriores”.

Nos dias de hoje, diversas abordagens farmacológicas podem ser empregadas com o objetivo de aliviar e controlar a dor. Anti-inflamatórios esteroidais e não esteroidais, relaxantes musculares, antidepressivos tricíclicos e anticonvulsivantes, fazem parte do arsenal terapêutico para o tratamento de diversos tipos de dor, mas nenhum destes possui ação tão contundente quanto a classe dos opioides. Entende-se como opioide qualquer substância capaz de ativar receptores de opioides. Sendo assim, a morfina e seus derivados sintéticos e semi-sintéticos são considerados os principais analgésicos de ação central com capacidade de aliviar dores moderadas a fortes, advindas de procedimentos pós-operatórios, dores oncológicas, aguda e crônica.

A maioria dos opioides é agonista de receptores opioides µ, local onde exercem sua ação analgésica, porém alguns opioides também agem em receptores k; outros, como a metadona, têm ação também sobre os receptores de glutamato do tipo NMDA, e o cloridrato de tramadol, além de ativar receptores opioides, inibe a recaptação de noradrenalina e serotonina, potenciando a ativação de vias descendentes da dor. De maneira geral, a ação analgésica dos opioides pode ser entendida como uma inibição da atividade elétrica neuronal, associada a diminuição da liberação de neurotransmissores, diminuindo assim a propagação da informação da dor em diversos locais do sistema nervoso tais como os terminais nociceptivos distribuídos pela extensão corpórea, inibição da sinapse glutamatérgica no corno da raiz dorsal da medula, além de ações supra-espinhais, bloqueando as vias ascendentes da dor, no trato espinotalâmico e inibindo os interneurônios GABAérgicos localizados na substância cinzenta periaquedutal, consequentemente levando a ativação de vias analgésicas descendentes da dor (para revisão: Al-Hasani e Bruchas, 2011).

Apesar de seu potente efeito analgésico, opioides também podem gerar uma gama vasta de ações adversas como náuseas, vômitos, constipação intestinal, supressão respiratória, dependência, tolerância e hiperalgesia, sendo este último um de seus efeitos mais intrigantes. É um pouco assustador imaginar que um analgésico tão potente possa determinar um aumento na sensibilidade a dor, entretanto este fato está cada vez mais descrito na literatura por diversos autores (para revisão: Parsadaniantz et al., 2015). Por definição, hiperalgesia induzida por opioides é o aumento da sensibilidade a dor em pacientes utilizando estes fármacos, promovendo um efeito farmacológico paradoxal. Acredita-se que a hiperalgesia possa acontecer quando um indivíduo receba doses elevadas e repetitivas de opioides (administração crônica), ou quando recebe doses altas por infusão intravenosa de forma aguda, como em procedimentos operatórios (Hayhurst et al., 2016). Além da forma de administração destes fármacos poder estar relacionada ao aparecimento de hiperalgesia, pré-disposição genética, uso de antipsicóticos, experiência dolorosa pregressa e medo de sentir dor, também podem estar relacionados ao desenvolvimento de hiperalgesia induzida por opioides (Koppert et al., 2007).

Mas como explicar a hiperalgesia induzida por opioides do ponto de vista celular e molecular?

O quebra-cabeças celular e molecular da hiperalgesia parece depender de interações complexas entre os diversos tipos celulares que compõem o sistema nervoso central, sendo a ativação de receptores de opioides em neurônios, astrócitos e microglias, associado a liberação de citocinas pró-inflamatórias, eventos cruciais para o entendimento do mecanismo de hiperalgesia induzida por opioides. Em neurônios, a ativação de receptores de opioides pode diminuir a recaptação de glutamato na fenda sináptica, além de aumentar a atividade de receptores NMDA.

Ainda em neurônios, a liberação de BDNF de astrócitos induzida por morfina, causa uma diminuição nos transportadores de Cl- do tipo KCC2, invertendo o gradiente de concentração deste íon. Neste momento o GABA, um importante neurotransmissor inibitório, passa a aumentar a excitabilidade dos neurônios. Em astrócitos, receptores de opioides ativados de forma crônica podem promover a liberação de citocinas pró-inflamatórias, tais como o fator de necrose tumoral alfa (TNFα), a interleucina-1β (IL-1β), IL-6, IL-10, proteína quimiotática de monócitos 1 (CCL2) e a quimiocina CXC 1 (CXCL1). Além disso, a morfina é capaz de inibir os transportadores de glutamato de astrócitos, promovendo um aumento na concentração extracelular deste neurotransmissor.

Já a ativação de receptores de opioides em microglias, um tipo de macrófago residente no sistema nervoso, leva a um aumento na expressão de receptores purinérgicos ionotrópicos P2X4 e P2X7, além de receptores do tipo Toll 4 (TLR4), aumentando ainda mais a liberação de citocinas pró-inflamatórias citadas anteriormente, além de ATP e óxido nítrico (Zhou et al., 2010). Por sua vez, as citocinas liberadas de astrócitos e microglias vão ativar seus respectivos receptores localizados em neurônios nociceptivos, causando uma dessensibilização dos receptores de opioides, o que causará uma diminuição no efeito analgésico destes fármacos. Além disso, a ativação de receptores de citocinas em neurônios causa um aumento na expressão de receptores excitatórios de glutamato do tipo NMDA gerando um aumento de sensibilidade à dor por diminuição do limiar de excitabilidade neuronal (revisão detalhada sobre o tema: Roeckel et al., 2016).

Juntos, estes mecanismos celulares e moleculares conduzem à sensibilização de neurônios e contribuem para o desenvolvimento de hiperalgesia induzida pela morfina e seus derivados. Entretanto, mesmo diante de avanços científicos importantes, resta saber o quanto deste conhecimento à cerca das ações dos opioides poderá ser de fato aplicado no manejo da dor e de seus efeitos adversos.

Para saber mais:

Al-Hasani, R. and Bruchas, M.R. 2011. Molecular Mechanisms of Opioid Receptor-Dependent Signaling and Behavior. Anesthesiology. 115(6): 1363–1381.
Christina, J., Hayhurst, M.D., Marcel, E., Durieux, M.D. 2016. Differential Opioid Tolerance and Opioid-induced Hyperalgesia. Anesthesiology. 124:483–8

Gatchel, R.T., Peng, Y.B., Peters, M.L., Fucks, P.N. and Turk, D.C. 2007. The biopsychosocial approach to chronic pain: scientific advances and future directions. Psychological Bulletin. 133(4):581-624.

Horvath, R. J., Romero-Sandoval, E. A. and De Leo, J. A. 2010. Inhibition of microglial P2X4 receptors attenuates morphine tolerance, Iba1, GFAP and μ opioid receptor protein expression while enhancing perivascular microglial ED2. Pain. 150, 401–413.
Koppert, W. and Schmelz, M. 2007. The impact of opioid-induced hyperalgesia for postoperative pain, Best Practice Res. Clin. Anaesthesiol. 21, 65-83.

Parsadaniantz, S.M., Rivat, C., Rostène, W. and Goazigo, A.R. 2015. Opioid and chemokine receptor crosstalk: a promising target for pain therapy? Nature Reviews Neuroscience. 16. 69-78.

Roeckel, L-A., Le Coz, G-M., Gavériaux-Ruff, C. and Simonin, F. 2016. Opioid-induced hyperalgesia: Cellular and molecular mechanisms. 338. 160–182.

Zhou, D., Chen, M. L., Zhang, Y. Q. & Zhao, Z. Q. 2010. Involvement of spinal microglial P2X7 receptor in generation of tolerance to morphine analgesia in rats. J. Neurosci. 30, 8042–8047.

 

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